Um homem sentado em uma cadeira de rodas é abraçado efusivamente por um negro

Filme Intocáveis fala de amizade e superação

14/01/2018 Deficiência Física, Notícias 1

Há um elemento de novela de Manoel Carlos em Intocáveis: assim como nas tramas daquele autor, o filme se concentra basicamente nos dilemas e no cotidiano de pessoas ricas que vivem num mundo que soa frequentemente fantasioso em seu luxo e sua comodidade. Por outro lado, como os diretores Olivier Nakache e Eric Toledano se esforçam em demonstrar (incluindo até mesmo imagens dos indivíduos reais ao final da projeção), o longa é inspirado em uma história verídica, embora não seja preciso ser particularmente inteligente para perceber que a palavra “levemente” deveria ser incluída antes de “inspirado”. Fictícia ou não, porém, o fato é que a trama é divertida, simpática e humana o bastante para equilibrar a artificialidade ocasional que a permeia.

Foto vertical, que mostra o nome do filme Intocáveis, em letras vermelhas no alto, um homem em uma cadeira de rodas e um negro o empurrando. Ao fundo, a paisagem de neve e o por do sol

Poster oficial do filme Intocáveis (Intouchables)

Vivido pelo experiente François Cluzet (cada vez mais parecido com Dustin Hoffman), Philippe é um ricaço que aprecia a Arte e vive cercado por funcionários fiéis que lhe dedicam atenção incondicional desde que se tornou tetraplégico em um acidente de parapente. É então que conhece Driss (Sy), um jovem negro recém-saído da prisão, e decide contratá-lo como acompanhante/enfermeiro por reconhecer no rapaz não a experiência necessária para seus cuidados, mas uma espontaneidade que lhe falta no dia-a-dia. Aos poucos, os dois homens se tornam próximos, mudando a maneira como encaram o mundo.

E só de escrever a frase anterior já posso imaginar todos os clichês que uma narrativa como esta normalmente enfiaria na goela do espectador – e alguns deles, é preciso admitir, se encontram em Intocáveis. Há a busca de Philippe por alguém que não sinta pena de seu estado; há a família humilde de Driss e o irmão jovem que parece prestes a se entregar ao crime; há os funcionários que não parecem ter vida pessoal, existindo em função do patrão bondoso; há até mesmo o flerte obrigatório entre o protagonista e a secretária particular de Philippe. O que não há no roteiro – e que faz toda a diferença do mundo – é o desespero subjacente dos realizadores para provocar as lágrimas do espectador a cada cena, já que os diretores/roteiristas parecem mais interessados em desenvolver a dinâmica entre aqueles dois homens e compreender por que se tornaram tão próximos do que em investir no melodrama. Assim, quando Driss finalmente parece se entregar ao papel de enfermeiro e toca carinhosamente o patrão em uma noite difícil, o plano-detalhe de sua mão no pescoço de Philippe é exibido apenas por tempo suficiente para estabelecer a importância do momento, mas não o bastante para fazer um draminha superficial.

Esta abordagem enxuta, aliás, encontra reflexo também na performance de Cluzet, que encarna Philippe como um homem de olhar sereno e sorriso fácil que, se enfrentou algum momento de depressão em função da invalidez, já a deixou há muito no passado – e o fato de ser tratado como amigo em vez de como paciente já é o bastante para satisfazê-lo. Enquanto isso, o carismático Omar Sy é hábil ao sugerir uma arrogância desafiadora por baixo dos modos alegres de Driss, demonstrando também cuidado em sua composição através de gestos sutis que indicam sua atenção para com Philippe (como ao reposicionar o braço deste na poltrona do avião ou ao travar a cadeira de rodas num gesto rápido em um restaurante). Por outro lado, a subtrama envolvendo a família do rapaz jamais é desenvolvida o bastante para trazer algum peso dramático ao filme, ao passo que a filha adotiva do milionário surge completamente dispensável, não sendo aproveitada nem mesmo para estabelecer um paralelo entre sua adoção e a de Driss.

No entanto, Intocáveis funciona impecavelmente naquilo que mais interessa: o humor. Retratando com leveza o cotidiano da dupla principal, o filme provoca constantemente o riso através da irreverência de Driss diante da tetraplegia do amigo, seja ao brincar com sua distração ao estender o telefone para Philippe ou ao ilustrar sua curiosidade diante da insensibilidade deste à dor. Da mesma forma, o diretor de fotografia Mathieu Vadepied é habilidoso ao contrapor a realidade confortável do milionário, com seus planos abertos e paleta quente, à dureza enfrentada pela família de Driss, que surge constantemente em cores frias e quadros fechados que ressaltam a claustrofobia de um apartamento pequeno ocupado por tantas pessoas. Além disso, é admirável o cuidado da produção com detalhes que podem passar despercebidos, mas conferem realidade à narrativa, como a cicatriz de traqueostomia exibida por Philippe.

Assim, é uma pena que no terceiro ato o filme se entregue pela primeira vez a um conflito artificial para gerar uma pequena crise que mova a trama ao seu desfecho, já que jamais fica claro o motivo que leva Driss a tomar certa decisão, fazendo algo que, a rigor, não seria necessário. Este, porém, é um pequeno tropeço em um projeto tão caloroso e humano que, mesmo sem romantizar a invalidez de Philippe, consegue demonstrar que ainda há certo conforto em saber que, mesmo capaz de mover apenas a cabeça, isto é o suficiente para que ele possa ensaiar uma leve dança. E pequenas alegrias como esta não deixam de ser alegrias por serem pequenas.

Ficha técnica: Dirigido por Olivier Nakache e Eric Toledano. Com: François Cluzet, Omar Sy, Audrey Fleurot, Anne Le Ny, Clotilde Mollet, Alba Gaïa Bellugi.

* A crítica foi escrita pelo profissional Pablo Villaça, crítico de cinema desde 1994, e editor do site Cinema em Cena (acesse aqui)

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