Desenho bastante colorido de uma floresta, com duas pessoas em cadeira de rodas, uma em destaque ao centro da imagem, fumando, de cabelos brancos e um chapéu vermelho, e outro no canto direito, ao fundo, aparentando estar pendurado em um galho da árvore.

O caminho dos sentidos na palavra ‘cadeirante’

12/01/2019 Deficiência Física, Notícias 0

Em novembro do ano passado, entrei em contato com o linguista e jornalista Gustavo Conde acerca do uso da palavra cadeirante, se estava etimologicamente correto. O sufixo -nte exprime a ideia de agente da ação, formando nomes, ou exprime qualidade ou estado, formando adjetivos. Alguns exemplos são estudante, o que estuda; comandante, o que comanda; etc. Cadeirante, portanto, não poderia ser “o que cadeira”. Gustavo me respondeu: “De cara, posso dizer: não há nada errado com o termo cadeirante. Mas, preciso ir mais a fundo para emitir um ‘parecer’ mais técnico. Nas minorias, as palavras seguem uma outra lógica discursiva”. Assim, no dia 30 de dezembro, recebi um e-mail dele, me comunicando que havia publicado seu ‘parecer’ no site Brasil 247, dedicando-o a mim no final do texto. Agradeço de coração a deferência e o apresento a vocês a seguir.

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Foto de um homem vestido com uma blusa preta, um gorro azul escuro, óculos escuros, barba grisalha cheia, sorrindo, na frente de um painel cinza com desenhos de pessoas e da palavra DIRETAS JÁ! do lado direito, alto.

Gustavo Conde é linguista, colunista do Brasil 247 e apresentador do Programa Pocket Show da Resistência Democrática pela TV 247

Desde a postulação seminal de Ferdinand de Saussure – o formulador da teoria mais consistente sobre a língua humana até hoje, raiz de todas as outras que a sucederam -, a de que o signo linguístico é composto por significante e significado, a ‘palavra’ se libertou do cárcere do ‘sentido a priori’.

Palavras (os signos) podem ter a mais diversas combinações entre forma e conteúdo, sendo que a arte de codificar essa relação – que é eterna enquanto dura – requer uma visão menos simplista a respeito da característica humana de produzir sentido através dos sons articulados do trato vocal ou mesmo dos caracteres de um reles teclado de computador.

O sentido – associado a uma palavra – nem sempre coincide com a etimologia, com a morfologia, com a lexicografia (o mundo dos dicionários) ou mesmo com certos usos sociais consagrados.

A relação do sentido com a palavra é tão pouco óbvia que, neste próprio texto, o sentido de ‘palavra’ já mudou, sem que ninguém percebesse: no segundo parágrafo, ‘palavra’ era sinônimo de signo. No terceiro, é sinônimo de significante. Ninguém morre por isso – pelo contrário.

Esse é o fenômeno da produção de sentido: ele não é estático e nem pode ser. A arte de produzir discurso (tecnicamente, sinônimo de sentido) depende de ‘movimento’ e não apenas do movimento linear das palavras encadeadas, dos deslocamentos sintáticos das frases interrogativas, da progressão textual, dos efeitos de coesão, das referências, anáforas e catáforas.

A arte de produzir sentido depende da oscilação controlada das associações consagradas entre sentido e forma, entre conteúdo e invólucro, entre significante e significado, entre espírito e corpo, entre ‘essência’ e palavra.

A própria palavra ‘sentido’ tem outras significações que não essa óbvia, mais intuitiva que qualquer outra coisa – a saber, a de ‘significado’. ‘Sentido’ pode ser representado por uma ‘seta’, o que obrigatoriamente expressa ‘movimento’.

Sentido São Paulo, sentido Rio de Janeiro. Para que o significado geográfico de uma dessas capitais seja alcançado, é preciso pegar o ‘sentido’ certo, caso contrário, corremos o risco de entrar em uma estrada nonsense, de nos perdermos na curva (ou na tradução).

A língua é boa porque ela é infinita. Os que tentam domesticá-la – como os gramáticos normativistas criadores de manuais – fazem perder toda a sua graça, arrastando-se pela superfície das regras decoráveis que, aliás, no Brasil, produziram a aberração de um Ministério Público severamente prejudicado intelectualmente (de tanto decorar gramáticas para passar em concurso).

Gramáticas são o que são: manuais para consulta e só. Ainda habitam o século 19 no que diz respeito a epistemologia do campo dos estudos da linguagem – e essa deve ser a sua natureza, de fato: é um cabresto, um ‘empuxo’ para organizar o regime das publicações em língua soberana. O trabalho do gramático prescritivo é ingrato e necessário.

O mundo do sentido é outro papo. Aqui, o cérebro entra. O sentido é ‘discutível’ e isso faz toda a diferença. Sentidos consagrados historicamente existem e são maioria. Mas, mudanças de costumes, inflexões culturais e ‘ondas’ políticas têm o poder de desorganizar percentuais consideráveis de regimes semânticos de uma língua em funcionamento.

É óbvio que é precisamente este fenômeno que está em curso neste momento no Brasil e em parte do mundo: a ascensão do ódio como faber político produziu uma imensa tsunami semântica que bloqueia o debate público e obriga sujeitos enunciadores a buscarem novas estratégias para o dizer.

Quem optar pela zona de conforto das simplificações no mundo da codificação sócio-política estará sempre defasado e tende a operar como coadjuvante – lembrando que não se faz uma sociedade apenas com protagonistas.

Um dos fenômenos mais instigantes nesse universo das enunciações e das significações está a ‘rotulagem segmental’. Como defino meu outro e como esse outro define o ‘um’. A estereotipia social, seja na esfera das personagens, seja no campo dos grupos mais heterogêneos, opera como elemento estrutural da construção dos sentidos sociais.

O fenômeno ainda enseja configurações discursivas mais específicas e, por isso mesmo, complexas – e pedagógicas. Tomemos as ditas minorias. Negros, mulheres, indígenas, gays, surdos, idosos. Como operam os rótulos-palavras aqui?

A palavra ‘rótulo’ já insinua algum sentido pejorativo, quando aplicado ao campo social. Eis que tomo posse dessa insofismável realidade para revelar mais um recurso da língua: é possível, acreditem, ‘modificar’ o sentido de uma palavra no curso de um texto. Proponho, portanto, que ‘rótulo’ não seja pejorativo aqui. Peço, imploro, rogo. Para esta reflexão – e apenas para esta – sugiro que ‘rótulo’ tenha o sentido de ‘marca’, de ‘vocativo’, de classificação, apenas.

Isso posto, avancemos. Como os negros gostam de ser chamados? Afro-brasileiros? Creio que, ao menos no Brasil, não. O politicamente correto, às vezes, fracassa. A palavra ‘negro’ tem vários sentidos históricos, mas sua força e sua marca ainda são muito mais eloquentes do que qualquer outro tipo de nomeação artificial, prescritiva.

A palavra ‘negro’ tem cifras, para além dos sentidos históricos. Ela revela ‘resistência’, ‘sacrifício’, ‘sofrimento’, ‘coragem’, ‘força’, ‘ancestralidade’. As cifras tensivas (tímicas, temporais), na dimensão semiótica, podem ser ‘afirmação’, ‘disposição’, ‘coesão’ e ‘alegria’ (misturada ao seu contrário, ‘tristeza’, como sói acontecer no mapeamento das grandezas semióticas).

Os sentidos ‘pejorativos’ de ‘negro’ se tornaram crime racial. Não podem sequer serem mais enunciados, sob pena de ordem de prisão e sob a evidente violência moral. Isso inibe os sentidos. Essa é a operação prescritiva verdadeiramente democrática e consequente (que funciona como uma ‘gramática’ judicial-social). Os sentidos também precisam ser controlados, quando eles são apenas gatilhos de violência.

‘Negro’, portanto, é a palavra que designa um segmento na inteireza de seu sentido histórico, subjetivo, pragmático e social. Convém não esquecer: os sentidos das palavras requerem uma série de ‘cruzamentos’ intersubjetivos para alcançarem sua ‘materialidade discursiva’. Ou: a depender de quem fala, a palavra ‘negro’ pode ter, sim, um sentido pejorativo – a depender, sobretudo, do tom e do contexto.

É essa dimensão da construção dos sentidos que o Direito, por exemplo, ignora, no seu simplismo interpretativo, arcaico e descolado dos estudos contemporâneos da linguagem – assim como o jornalismo tradicional, amarrado a teorias ultrapassadas de comunicação.

Use-se esse mesmo raciocínio para ‘surdos’. Os surdos não toleram ser chamados de ‘deficientes auditivos’. Porque a informação ‘médica’ lhes retira a ‘identidade’.

Esse regime de nomeações e alcunhas é muito bem estabelecido há tempos na experiência social dos sujeitos. Tripudiar ou maldizer sobre uma ideia, instituição, estética ou segmento étnico lhe dá existência indefectível no mundo simbólico. É o nascimento de um signo, em sua inteireza, doloroso, catártico, sob o grito do sentido que se desconecta de sua matriz discursiva, ganhando vida própria.

Assim ocorreu com as palavras-signo “cubismo”, “expressionismo”, “dodecafonismo”, “experimentalismo”, para ficarmos apenas no mundo da estética. Foram significantes pejorativos em sua origem – debochados, negativos, jocosos – que, depois, foram alçados à categoria de denominação técnica, plenos de requinte, sofisticação e soberania. Passaram a demarcar, por assim dizer, um campo, um mundo à parte, o que lhes confere, enquanto “palavras”, uma autonomia e uma irradiação discursiva singulares, “organizadoras” de sentido.

É nessa lógica que se enquadra, por exemplo, a palavra “cadeirante”. Em algum momento da história, quando todo o espectro ideológico habitava ainda um mundo discursivo muito rudimentar, ‘cadeirante’ produzia um sentido pejorativo, quase que de rebaixamento.

Nomear um sujeito da história como ‘cadeirante’ há 30 anos atrás era como segregá-lo a um papel coadjuvante, secundário, significado com a demanda dos cuidados especiais, da comiseração, do respeito acanhado e transverso que se desdobra e toma ares de “pena” (o jogo dos sentidos, advirto, não é fácil – a bem da verdade, é o mais difícil de todos).

Ocorre que a história não para para descansar. Ela prossegue com seus processos de significação ininterruptos, impiedosos, insinuantes e “reorganizadores” de sentido. À medida que as chamadas ‘minorias’ (outro rótulo ainda em fase de maturação) foram se afirmando, a palavra ‘cadeirante’ foi ganhando sua soberania e seu sentido poderoso de identificação subjetiva.

Depois da “densidade” que a pejoração lhe conferiu, como o sangue que recobre um bebê ao nascer, a palavra ganhou vida própria e libertou-se da tutela de enunciadores hostis para reabitar o universo social das identificações turbinadas com autoestima e autoafirmação.

O cadeirante, hoje, tem orgulho de ser chamado por esse nome. Mais do que isso, faz questão, uma vez que o nome o investe de inserção histórica e soberania cidadã.

É um nome que invade todos os outros mundos do discurso, como o jurídico, o médico, o religioso e, é claro, o político.

É uma palavra forte, que irradia assertividade e altivez, que se apodera das narrativas, que confere adesão social, produz afetos e insere crianças no mundo simbólico sem o ranço do preconceito residual que, por mais que recrudesça, não é suficiente para lhe arrancar os sentidos.

Os cadeirantes podem ter orgulho de suas singularidades que, aliás, os fazem tão mais especiais do que nós, “andantes”. Eles chamam a atenção para a maravilha delicada que é habitar com o devido desejo um mundo simbólico heterogêneo que se reinventa a cada segundo, a cada passo, a cada giro de uma cadeira que decidiu se pôr em movimento para participar da luta pelos valores democráticos de sempre: o sonho, o trabalho e o protagonismo*.

* Este ensaio é dedicado ao jornalista Victor Vasconcelos.
** Texto escrito por Gustavo Conde, linguista, colunista do 247 e apresentador do Programa Pocket Show da Resistência Democrática pela TV 247 (aqui). Leia o texto original aqui.

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