Sebastião Salgado posa com algumas de suas fotos

Sebastião Salgado diz que filho com Down mudou sua compreensão da vida

13/08/2013 Depoimentos, Histórias de vida, Notícias 0
Sebastião Salgado e a pianista Lélia Wanick, casados há 36 anos

Sebastião Salgado e a pianista Lélia Wanick, casados há 36 anos

Reconhecidamente um dos maiores fotojornalistas do mundo, o brasileiro Sebastião Salgado tem uma carreira que casa beleza plástica com o engajamento social. Seus ensaios fotográficos, como “Trabalhadores” e “Êxodos”, focalizam o sofrimento dos excluídos e dos deslocados. Nesta entrevista exclusiva à BBC Brasil, Sebastião Salgado atribui seu interesse por causas humanitárias ao fato de ser pai do Rodrigo, que tem a Síndrome de Down (o fotógrafo e sua mulher, Lélia, têm ainda outro filho, Juliano).

BBC Brasil: Como foi a chegada do Rodrigo na sua vida?
Sebastião Salgado: Foi como se um trem tivesse passado em cima da gente. Foi totalmente inesperado e muito duro. Acho que ninguém está preparado para isso. A não ser quando você faz a aminiocentese e sabe que uma criança com Down vai chegar, o que não foi o nosso caso. O drama começou já no primeiro dia. Ele nasceu de cesariana e, normalmente, deveria acompanhar a mãe para o quarto do hospital e não foi o caso. Ficou numa espécie de incubadeira. Quando a Lélia acordou, quis saber onde estava o Rodrigo e se tinha havido algum problema. Respondi que não. Ela tinha certeza que tinha algum problema e fui saber com os médicos. O médico me confirmou que havia algo de errado, disseram que ele era hipotônico, que tinha um traço palmar único e havia, portanto, a possibilidade de ele ter a Síndrome de Down. A partir deste momento, a minha vida mudou completamente. Eu tentei por todas as maneiras justificar que ele não tinha a Síndrome, procurei fotos da Lélia que quando era criança tinha um olho meio puxadinho… Isto levou aproximadamente três semanas até a gente ter a confirmação clínica de que ele tinha a Síndrome de Down.

BBC Brasil: E como foi o anúncio da confirmação do diagnóstico?
Salgado: Me lembro que a gente estava fora de Paris, numa casa que não tinha telefone. O médico ligou para uma fazenda ao lado e falou comigo. Tive uma crise de choro. Devo ter chorado umas quatro horas. Ninguém me consolava, a Lélia tentava de tudo… Mas me esvaziei de todas as expectativas.

 

Foto tirada em 1986, presente no livro Serra Pelada publicado em 1999

Foto tirada em 1986, presente no livro Serra Pelada publicado em 1999

BBC Brasil: E como você viveu com esta nova situação?
Salgado: Uma vez, quando ele era pequenininho, fomos ver um médico que fazia uma operação para impedir que a criança ficasse com a língua para fora, uma modificação no céu da boca para acomodar a língua. Me lembro que estávamos quase chegando na cidade, na Alemanha, paramos o carro, pensamos e voltamos para casa. Era, na verdade, uma solução para resolver o nosso problema. E não o dele. Até que um dia encontramos a solução. E a solução era entender que ele era o nosso filho e que você tinha que amá-lo profundamente, viver com o problema que não tinha solução e aceitar. Pelo menos no meu caso, levou dois anos para chegar a este nível de maturidade.

BBC Brasil: E como esta aceitação afetou a sua vida?
Salgado: A partir daí a minha vida teve outro sentido, comecei a conviver com um filho que eu amava profundamente e já não encontrava mais, nas outras crianças, uma referência a ele. Comecei a ver que ele tinha capacidades incríveis que os outros, ditos normais, não tinham. Ele tinha a normalidade dele. A Lélia, muito antes de mim, por ter carregado ele por nove meses, já tinha aceitado o Rodrigo como ele era. O Rodrigo nasceu com uma série de complicações, inclusive um problema respiratório grave. A Lélia praticamente passou dois anos dormindo sentada com ele no colo, com medo de o Rodrigo morrer. Às vezes, ele começava com um problema respiratório às quatro da tarde e às dez da noite a gente estava no hospital com o Rodrigo com pneumonia. Acho que porque a Lélia teve esta convivência tão forte, tão carnal com o Rodrigo, ela resolveu esta questão muito antes de mim. Mas, isso tudo foi só no começo. Ele se acertou na vida também, no lado físico. Neste começo, eu viajava muito por causa do meu trabalho como fotógrafo.

 

Sebastião Salgado retrata a dura vida do nordestino e sua luta contra a seca

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BBC Brasil: O senhor acha que o nascimento do Rodrigo afetou o seu trabalho também?
Salgado: Acho que muita coisa que faço hoje, próxima do social, de tanta organização humanitária, necessariamente foi o Rodrigo quem me trouxe. Ele me deu uma outra compreensão da vida, outra maneira de eu ver a humanidade, de me situar, de ver outras anomalias. A gente teve o direito a freqüentar um outro universo que se eu tivesse ficado no mundo dos “normais” eu não teria conhecido. Foi muito rico para mim.

BBC Brasil: E como é hoje a sua relação com o Rodrigo?
Salgado: O Rodrigo é um homem de 23 anos que vive num mundo de silêncio. Às vezes, a Lélia viaja e eu passo o fim de semana com o Rodrigo e é um momento de relativamente pouca comunicação, mas é um mundo de um amor muito profundo. Na realidade, hoje eu tenho a impressão que a gente teve uma sorte imensa de ter tido um anjo que chegou na nossa casa. Engraçado que esta combinação de genes leva a uma doçura imensa do ser humano, atingida por esta combinação no par 21, de ter não um par de cromossomos, mas três. Eu viajo muito por conta do meu trabalho e toda vez que encontro uma pessoa que nasceu com a Síndrome de Down, em qualquer lugar do mundo, eu paro, pois tenho certeza que ele vai me receber. Me lembro que estava trabalhando num campo de palestinos no Líbano controlado pelo Hamas. Era um ambiente muito duro e mesmo com autorização da Organização para Libertação da Palestina (OLP), era difícil fotografar, pois havia várias instituições envolvidas e toda vez que eu apontava a minha câmera, no mínimo, tinha um fuzil Kalashnikov apontado na minha direção. E aí eu tinha que passar horas explicando o que estava fazendo. Horas de discussão para vinte minutos de fotos. Me lembro que, uma vez, vi uma pessoa passando e tirei um foto dela. A pessoa olhou para mim e pensei que ia ter problema. Ele veio andando na minha direção e aí vi que ele tinha Síndrome de Down. Ele me abraçou e me deu um beijo imenso. (Nesta hora, Sebastião Salgado se emociona com a lembrança e derrama uma lágrima).

BBC Brasil: O senhor já pensou em fazer um trabalho sobre a Síndrome de Down?
Salgado: Não, nunca pensei. Tenho vontade de publicar um livro sobre a nossa vida com o Rodrigo. Ele já viajou o mundo inteiro, já foi à China… Ele sempre foi parte integrante da nossa vida.

 

Foto do Livro Êxodos, publicado em 2000, que "conta a história da humanidade em trânsito"

Foto do Livro Êxodos, publicado em 2000, que “conta a história da humanidade em trânsito”

BBC Brasil: Ele estudou em colégio regular?
Salgado: Ele sempre estudou em instituições especiais, mas sempre morou na nossa casa. Ele sempre saía de manhã e voltava à tarde do colégio. A gente não mora muito longe do Marais, mas a pé leva 20 minutos. A gente levava o Rodrigo de carro, depois a pé. Até o dia que eu o ensinei como ir sozinho para o colégio. Ele tem uma capacidade fenomenal de proteção. O Rodrigo nunca atravessou fora da faixa de pedestres ou com o sinal vermelho. Ele sabe que não é tão ágil como os outros. É impressionante como as pessoas com Síndrome de Down são capazes de assimilar os acidentes geográficos, as cores, as letras…Eles criam um universo de referência para si. Anos mais tarde, quando o Rodrigo tinha 12 anos, ele foi estudar numa escola mais afastada, no Quartier Latin, que levava 40 minutos de ônibus da nossa casa. Um dia, ele saiu de casa e meia hora depois, ligaram do colégio para dizer que tinha greve de ônibus, mas o Rodrigo já tinha saído e não tinha retornado. Pensamos que ele estava perdido. Comecei a procurar, fui ao ponto de ônibus, andei para cá e para lá e nada dele. Finalmente, ligaram da escola para dizer que o Rodrigo tinha chegado à escola, transpirando muito, exausto. Ele tinha feito o mesmo caminho do ônibus, não tinha como ter se perdido. Ou seja, o seu sentido de responsabilidade e sua lógica são incríveis.

BBC Brasil: O que ele gosta de fazer?
Salgado: O Rodrigo é muito sistemático, gosta de desenhar, tocar piano. Já passou em dois concursos nacionais, toca um pouco de violão, viaja sozinho para o Brasil. O Rodrigo é uma das pessoas mais realizadas que conheço.

BBC Brasil: E como ele se relaciona com o resto das pessoas?
Salgado: As pessoas que o aceitam, e se dão para ele, ele retribui. Mas, as pessoas que não se aproximam dele, ele não se incomoda em saber. O Rodrigo sabe que o universo dele é limitado às pessoas que o aceitam. Ele tem uma série de amigos a quem ele tem uma fidelidade absoluta. O Rodrigo sempre leva as fotos dos amigos junto com ele quando viaja.

BBC Brasil: O Rodrigo gosta de ser fotografado?
Salgado: Adora ser fotografado e adora fotografar, principalmente animais. O Rodrigo é uma pessoa bastante realizada e integrada na vida.

BBC Brasil: E ele gosta das suas fotos?
Salgado: O Rodrigo nunca se expressou sobre isso, mas ele absolutamente sabe quando a foto é minha. Conhece as minhas fotografias perfeitamente. Às vezes, ele vê uma foto minha numa revista e a identifica imediatamente. Mas, o Rodrigo não julga, não diz se gosta mais ou menos.

* Matéria retirada do site Deficiente Ciente

N.E. Sebastião Ribeiro Salgado Júnior nasceu em Aimorés (MG), em 8 de fevereiro de 1944. Em 1967, casou-se com a pianista Lélia Deluiz Wanick. O casal mora, atualmente, em Paris. Considerado o maior fotógrafo brasileiro e com reconhecimento internacional, ganhou diversos prêmios, como o Príncipe de Asturias das Artes, 1998; o Eugene Smith de Fotografia Humanitária; o World Press Photo; The Maine; a Medalha da Inconfidência; o Prêmio Unesco categoria cultural no Brasil Photographic Workshop ao melhor livro foto-documental; o 40º Prêmio Jabuti de Literatura: categoria reportagem; foi eleito membro honorário da Academia Americana de Artes e Ciência nos Estados Unidos. Sebastião Salgado também é autor de diversos livros, como Trabalhadores (1996), Serra Pelada (1999), Êxodos (2000) e tantos outros.

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