Mulher branca, ruiva, sentada em uma cama, sorrindo para a câmera. Ela não possui o antebraço esquerdo.

Precisamos naturalizar a deficiência e não só de 4 em 4 anos

05/09/2021 Capacitismo, Notícias 0

O combate à discriminação contra pessoas com deficiência ganha força durante Jogos Paralimpícos, mas é necessário que a discussão sobre a inclusão delas – desde a infância – não termine junto com o evento, alertam influenciadoras ouvidas pela BBC News Brasil.

Os depoimentos delas sobre a forma como as pessoas com deficiência são encaradas pela sociedade têm em comum o diagnóstico de que é um tratamento “oito ou oitenta”, nas palavras da criadora de conteúdo e mestre em políticas públicas Mariana Torquato, ou uma questão de “subestima ou superestima”, nos termos da estudante de jornalismo e influenciadora Ana Clara Moniz.

“Somos coitadinhos ou heróis”, diz Torquato, que tem 29 anos e nasceu sem o antebraço esquerdo. “O que a sociedade não consegue entender é que somos gente como qualquer outra pessoa”. Moniz, de 21 anos, usa o próprio exemplo – ela é cadeirante e tem uma doença neuromuscular chamada atrofia muscular espinhal (AME) – em sua argumentação: “As pessoas costumam me colocar num pedestal, me dar parabéns, simplesmente por eu estar bebendo cerveja no bar, sendo que eu só estou sendo uma universitária”, diz ela (que em seguida esclarece que interrompeu as idas ao bar devido à pandemia). Torquato, que é criadora do canal no YouTube ‘Vai uma mãozinha aí?’, que tem mais de 160 mil inscritos, diz que é desafiador explicar isso para quem não sente na pele o preconceito.

“Se uma pessoa chegar para você e falar: ‘nossa, você é uma inspiração para mim’, você vai achar isso bom, porque você não escuta isso simplesmente por cortar uma cebola. Provavelmente estará fazendo alguma coisa massa”.

O capacitismo, Torquato diz, “é um preconceito que se disfarça de cuidado, admiração, inspiração e elogio”. “Não é uma coisa gostosa ouvir que você é uma inspiração para outra pessoa dar valor ao corpo dela. Se ela não dá valor ao corpo dela, o problema é dela. Ela não precisa olhar meu corpo – que ela acha que é imperfeito, que ela acha que tá errado, que ela acha que é inferior ao dela – para se contentar com o corpo dela”.

Falta de conhecimento

Moniz diz que é a falta de conhecimento que faz muita gente não ver pessoas com deficiência como capazes. “A grande maioria das pessoas que são capacitistas, é por falta de conhecimento. É ignorância no sentido de não procurar saber e não se interessar”. Ela defende que falta espaço para o tema nos meios de comunicação e que faltam pessoas com deficiência realmente incluídas nas mais diversas áreas do mercado de trabalho.

É também por isso que tanto Moniz quanto Torquato argumentam que a inclusão de pessoas com deficiência deve vir desde a infância, na escola. “Quando a gente categoriza pessoas por tipo de gente, isso é uma coisa que não tem o menor sentido. Se eu estudasse numa escola especial, você acha que eu teria conseguido entrar na faculdade? Ou teria conseguido um emprego quando a pessoa olhasse meu currículo e visse onde eu estudei?”, diz Torquato, ao criticar o decreto que prevê escolas especializadas para atender pessoas com deficiência.

O decreto que institui a política nacional de educação para alunos com deficiência, do governo Jair Bolsonaro, entrou em vigor em outubro do ano passado, mas foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal em dezembro. Em agosto, o STF realizou audiência pública para discutir o tema.

A preocupação do governo, na avaliação das entrevistadas, deveria ser em melhorar o atendimento nas escolas regulares. “A inclusão que a gente viu atualmente no Brasil não é perfeita, até porque a gente tem pouca experiência em inclusão. A gente precisa de curso, de capacitação, de segundo professor, de monitoria, de coisas que a gente não vê em todas as escolas, e de reformas para acessibilidade”, diz Torquato.

Moniz conta que estudou durante 14 anos em uma escola regular, onde teve uma experiência que considera muito positiva – depois de ter sido negada em outras duas instituições de ensino. “Os amigos que estudaram comigo, hoje são, por exemplo, engenheiros que pensam em acessibilidade porque viveram comigo vários momentos, como em excursão de escola que eu não conseguia participar porque chegava lá e não conseguia entrar nos lugares porque não tinha escada e todo mundo ficava muito indignado com isso”, diz. “Quando a gente não tem esse contato, muitas vezes a gente deixa isso passar”. E resume: “A gente luta para que existam adaptações nas escolas regulares e não para que separem a gente. Inclusão não é segregação”.

‘4 em 4 anos’

Na batalha para normalizar as pessoas com deficiência, Moniz e Torquato dizem que as Paralimpíadas são de grande importância – apesar de destacarem que ainda falta investimento em atletas paralímpicos e em maior cobertura dos jogos.

Foi exatamente em resposta à falta de visibilidade das Paralimpíadas em relação à Olimpíada que Moniz, que conclui a graduação em jornalismo neste ano, decidiu cobrir o evento pelo próprio Instagram – onde conta com mais de 50 mil seguidores e apresenta de quadro de medalhas a depoimentos exclusivos de atletas que estão em Tóquio.

“Não que eu resolva o problema dessa falta de visibilidade – nem chego perto disso -, mas queria falar sobre, me dedicar a assistir e entender o que está acontecendo”, diz ela, que colocou como meta cobrir as Paralimpíadas de Paris, em 2024, depois de assistir ao documentário Pódio para Todos (Netflix).

Torquato diz que assistir a uma competição com “pessoas com corpos parecidas com o meu é uma coisa que enche meu coração de amor, alegria e representatividade”. Mas alerta: “Paralimpíada é incrível, a gente só tem que tomar cuidado com essa representatividade que só acontece de quatro em quatro anos. Precisamos naturalizar a deficiência – e não só de quatro em quatro anos”. E Moniz lembra que mesmo os atletas paralímpicos enfrentam problemas da falta de acessibilidade e do capacitismo no dia a dia.

“Eles têm que brigar numa vaga de deficiente, têm que brigar num restaurante que só tem escada, têm que brigar numa loja que eles têm que entrar. Não é como se as medalhas fossem resolver tudo”, diz. “Não estou diminuindo as medalhas, mas as Paralimpíadas não resolvem o que a gente tá lutando todos os dias pra falar”.

* Matéria de Laís Alegretti, da BBC News Brasil, em Londres

Receba um e-mail com atualizações!

Assine e receba, gratuitamente, nossas atualizações por e-mail.

Eu concordo em informar meu e-mail para MailChimp ( more information )

Nós jamais forneceremos seu e-mail a ninguém. Você pode cancelar sua inscrição a qualquer momento.

Compartilhe:

Sem nenhum comentário

Deixe o seu comentário!