Advogada escreve sobre regulamentação de avaliação das PcDs

21/12/2021 Notícias 0

O movimento de pessoas com deficiência até poderia estar entusiasmado com a notícia do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), de que o decreto sobre o instrumento de avaliação biopsicossocial da deficiência será publicado em 3 de dezembro. Não há euforia, entretanto. As pessoas com deficiência estão muito apreensivas por não terem sido envolvidas na aprovação do instrumento e na elaboração da norma, como determina o artigo 4, item 3, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD).

Se o governo erra no processo, claro que errará também no resultado. Os dois fatos são muito graves. É inaceitável a criação de obstáculos à participação política do movimento de pessoas com deficiência em relação à questão que, embora tenha sido prevista para garantir o acesso equânime às políticas públicas, poderá impactar negativamente suas vidas pela forma como vem sendo conduzida pelo governo.

A avaliação biopsicossocial da deficiência, estabelecida no artigo 2º da Lei nº 13.146/2015 – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), determinará se a pessoa é ou não pessoa com deficiência e, consequentemente, se terá acesso ou não aos direitos específicos desse público, como o Benefício de Prestação Continuada, a pensão por morte e a aposentadoria da pessoa com deficiência, além de outras mais de 30 políticas públicas, apenas na esfera federal.

A exclusão das organizações de e para pessoas com deficiência do debate em torno do tema começou já na edição do Decreto presidencial nº 10.415/2020 que, ao criar o Grupo de Trabalho Interinstitucional (GTI) para formular proposta de regulamentação do artigo 2º da LBI, vedou a divulgação das discussões em curso, sem a prévia concordância do MMFDH.

Com isso, o Decreto inviabilizou a troca de informações entre os representantes do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade) no GTI e os demais conselheiros. Também houve claro impedimento da participação política dos representantes do Conade, quando representantes do Ministério da Economia deixaram de compartilhar detalhes da pesquisa encomendada à Universidade de Marília (Unimar). Por força desses problemas e da decisão do MMFDH de prorrogar as atividades do GTI, o Conade deliberou, em reunião de 10/02/2021, retirar-se do Grupo de Trabalho.

Na sequência, em maio, foi dada ciência aos conselheiros do Conade sobre o Parecer 00184/2021 da Advocacia Geral da União, no sentido de que seus mandatos haviam expirado. Como o MMFDH não deu início ao processo eleitoral necessário à continuidade das atividades do Conselho, antes do fim dos mandatos, como costumava ocorrer, ou após esse Parecer, o Conade acabou silenciado.

Após esses fatos, as organizações de e para pessoas com deficiência ficaram sem qualquer informação sobre o processo de regulamentação do artigo 2º da LBI. Mesmo agora, após a conclusão das atividades do GTI, o MMFDH tem negado informações, solicitadas com base na Lei nº 12.527/2011 – Lei de Acesso à Informação (LAI), acerca do Relatório final e documentos anexos, entre os quais, as propostas de instrumento para o modelo único de avaliação biopsicossocial da deficiência e os documentos relacionados à pesquisa da Unimar sobre o tema.

Não foi por acaso o silenciamento do Conade e a negativa reiterada de informações, tanto no momento das discussões no GTI e da aprovação do instrumento, como agora, da elaboração da proposta de regulamentação. Ao contrário, a não participação política de representações das pessoas com deficiência é muito favorável aos interesses do Ministério da Economia, que infelizmente assumiu o protagonismo do processo.

O Conade, pelo menos por meio de uma das duas representações no GTI, vinha confrontando a pretensão desse Ministério e do Ministério da Cidadania, de construção de um novo instrumento, porque tal construção se baseava na lógica orçamentária e carecia de transparência e do envolvimento de pessoas com deficiência.

Fica claro, nesse contexto, o motivo determinante da recusa de acesso ao Relatório final e aos documentos que o acompanham, mesmo não tendo estes sido classificados como sigilosos: o intuito de inviabilizar a participação política das pessoas com deficiência – e provável resistência – em matéria que, do modo como está sendo encaminhada, propiciará economia relevante para o governo e desencadeará, ao gerar tal economia, graves prejuízos a esse segmento da população. Esse cenário foi antevisto muito claramente à leitura do Parecer do Comitê de Ética da Unimar, do qual consta que os resultados da pesquisa poderiam “ensejar as adequações necessárias para que o instrumento proposto pelo GTI seja aderente à realidade das políticas existentes” e “não represente custo orçamentário inadequado”.

As ações dos representantes dos Ministérios da Economia e da Cidadania, em relação à pesquisa, e do MMFDH, em relação à não divulgação prévia do Relatório do GTI e anexos, descumprem a Convenção, porque essa determina que, na “elaboração e implementação de legislação e políticas para aplicar a presente Convenção e em outros processos de tomada de decisão relativos às pessoas com deficiência”, os Estados Partes realizem “consultas estreitas” e envolvam “ativamente” pessoas com deficiência, por intermédio de suas organizações representativas (CDPD, artigo 4, item 3, sublinhei).

Semelhante comando é depreendido do lema “Nada sobre nós sem nós”, que impulsiona o movimento desde a década de 60.

A participação das pessoas com deficiência é, portanto, obrigatória desde a elaboração da norma, não atendendo o disposto na CDPD a divulgação do Relatório final, que orientará o Decreto regulamentador do Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência, tão somente após a publicação desse Decreto. A participação neste caso somente se concretizará com a realização de consulta pública que permita o envolvimento ativo das pessoas com deficiência no debate sobre os resultados do GTI, antes da edição do Decreto.

A notória demora do Poder Executivo em relação à criação do instrumento de avaliação biopsicossocial da deficiência (artigo 124 da LBI) não autoriza a exclusão das organizações de pessoas com deficiência do processo de regulamentação do artigo 2º da LBI.

Regulamentar esse preceito sem o envolvimento das organizações e sem a divulgação prévia dos documentos produzidos pelo GTI impossibilitará não apenas o controle social e a participação política na elaboração da norma, mas também o reconhecimento e o exercício de vários direitos humanos e liberdades fundamentais desse público.

Admitir que o próprio Poder Executivo concorra para tal frustração de direitos implica admitir também que o princípio da plena e efetiva participação e inclusão das pessoas com deficiência na sociedade não tem qualquer valor para o governo e que a dignidade deste grupo de seres humanos é apenas um ideal que pode ser facilmente esvaziado e superado por interesses que não os dessas pessoas.

* Texto de Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, advogada, ex-Conselheira no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), representante da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, e representante do Conade no Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência de ago.2020 a jan.2021, no site Jota.

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