Quem tem medo de ter um filho preto?

10/09/2022 Antoune Nakkhle (Crônicas), Articulistas, Notícias 0

Gabriela tem 17 anos e foi adotada com 28 horas de vida.

Quando decidimos adotar um bebê, muitos nos perguntavam sobre as especificações da criança que chegaria em nossas vidas. Aqui falo também dos amigos mais íntimos, além dos demais. Vocês querem uma criança de que idade? Menino ou menina? E a clássica e recorrente pergunta: vocês vão aceitar a criança mesmo que ela seja negra?

A ficha de adoção do fórum nos perguntava uma série de detalhes sobre o bebê que tanto queríamos. Era um material totalmente racional, com questionamentos pertinentes – outros nem tanto. Parecia que estávamos em uma imobiliária dizendo ao corretor que tipo de apartamento estávamos procurando.

Eu ficava chateado porque percebia que o mais importante para a maioria dos nossos amigos e parentes era saber se nosso filho ou filha cumpriria os padrões sociais tido como corretos. Eles achavam que poderíamos sofrer. Não me leve a mal, estou falando porque sou seu amigo; depois de tudo feito não adianta se arrepender; melhor prevenir do que tentar remediar depois; cuidado porque sendo preta eles podem achar que é filha da empregada; pra que adotar um garoto negro, o coitado vai sofrer demais. Ninguém tinha como primeira intenção perguntar como estávamos com a expectativa da chegada de nosso primeiro filho, se nosso coração estava batendo mais forte de emoção, essas coisas. No máximo diziam que estávamos comprando um pedaço do céu e que Deus estava vendo nossa bela atitude. Antes sempre vinha a curiosidade focada nos fatores externos. Era um deserto de estereótipos e preconceitos.

Enquanto o processo de adoção caminhava eu procurava entender o que acontecia – tanto comigo quanto com o mundo que nos cercava. Era importante para mim sentir a aceitação da pessoas como quando um casal engravida, mas isso eu não percebia. Até que passei a ouvir muitas e muitas vezes o questionamento: nossa, mas a criança vai ser negra? Você não tem medo? É importante você pensar nisso porque nunca se sabe quem a criança vai puxar. E se virar um mal elemento?

Agora já não era mais uma missão ouvir e responder a tantas perguntas, a essa altura eu já estava quase caindo na armadilha do pai branco que vai adotar uma criança preta e precisa se preparar de todas as formas “para que a adoção desse certo”. Veja que absurdo…

Quando me dei conta de que eu poderia me perder diante de tantas perguntas e opiniões, decidi ficar sozinho no deserto.

Minha filha nasceu e chegou após 28 horas em casa. Imediatamente virei pai. Me apaixonei no instante em que a peguei no colo. Oi, filha, tudo bem? Eu sou o seu pai. Alguns dias depois caiu o umbigo. Quatro meses depois passou a dormir cinco horas seguidas durante a noite. Não teve cólicas. Ganhou duas mães de leite. Aprendeu a andar e depois a engatinhar. Comia de tudo. Foi batizada. Falou papa. Falou mamãe. Foi pra escola. Tirou a fralda. Trocou o primeiro dente de leite. Comeu cheeseburguer e tomou milk shake pela primeira vez comigo – amou! Ficou melhor amiga do papai noel, a quem dava relatório de como se comportou o ano todo sempre que ele ia lá em casa no Natal. Correu pela casa, se deparou com o espelho e perguntou: papai, eu sou cor de chocolate! Eu sou neguinha? É, sim, filha. Caiu na gargalhada. Teve broncopneumonia aos três anos. Corremos para o hospital com o padrinho. Participou da sua primeira Feira de ciências aos 6 anos. Entrou no ballet clássico. Depois, kung fu. Primeiro acampamento com os amigos da escola. Aprendeu a ler. Colocou feijão no ouvido. Direto para o hospital. Amassou os dedos quando a janela caiu em cima de suas mãos. Aprendeu a fazer estrela. Dois passos, uma estrela. Primeiro beijo. Perdeu as avós. Entrou no ensino médio. Trançou o cabelo.

Mas por que mesmo eu estou falando isso tudo? Não. Eu não tive medo de adotar uma criança preta. A vida é legal do jeito que é. Sem filtros. Leia também texto do autor sobre discriminação aqui.

* Artigo foi publicado no blog Papo de Mãe

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