A força política da mulher sapatão

10/10/2022 Destaques, Notícias 0

O que significa ser lésbica? O que significa ser sapatão? São palavras sinônimas? Essas duas formas de nomeação possuem o mesmo efeito social?

Não há uma resposta exata para cada uma dessas questões. Algumas pessoas consideram que são sinônimos. Outras acreditam que existe uma diferença fundamental no que concerne às performances de gênero e como cada uma dessas categorias são tratadas na sociedade, mesmo tendo em conta que tanto lésbica quanto sapatão fazem referência a mulheres que amam e sentem desejo sexual por mulheres. Uma coisa é clara: historicamente, a palavra sapatão é usada por pessoas cisgêneras e heterossexuais para xingar mulheres masculinizadas ou andróginas. Transformando, consequentemente, o termo lésbica numa forma mais higienizada e, portanto, mais aceita de tratamento para mulheres que amam mulheres.

No entanto, com a maior abertura cultural, que é recente, para os movimentos de gênero, movimentos feministas, transfeministas, queer e outros que questionam a norma cisheterocentrada da construção da sexualidade humana, sapatão passou a ser usada como uma força de resistência política dos corpos dessas mulheres. O xingamento vem perdendo cada vez mais o seu suposto vigor.

Para entendermos a força política que ser sapatão comporta, precisamos assumir uma postura questionadora acerca das maneiras de existir em nossa sociedade. O que causa no imaginário social constatar o amor entre duas mulheres, algo que vai além do sexo, dos prazeres da carne? É possível suportar o amor entre duas mulheres quando estas requerem os mesmos direitos sociais que os sujeitos cishetero? E podemos ir além: o que causa tanto horror em um casal de duas mulheres quando uma delas (ou as duas) performam gêneros que não se encaixam nas demandas de feminilidade requeridas pelo social?

A existência sapatão toca e estremece a superfície na qual o modelo de dominação cisheterocentrado funda e fixa seus pilares, suas bases sócio-políticas e culturais. Ser sapatão contraria as normas fundadas pelo sistema patriarcal, desafia e propõe que o modelo de ser e estar no mundo reveja suas perspectivas, suas ações. O sistema capitalista patriarcal foi forjado por homens, representantes de uma camada social privilegiada, que, para manter seus ganhos, precisava explorar outros grupos, aqueles que não representam sua imagem e semelhança.

A produção de bens e exploração de recursos deixou suas marcas na cultura, compondo o estilo de vida dos sujeitos ocidentais, enraizando-se no inconsciente individual e coletivo, através das violências cunhadas pelos processos civilizatórios. As vidas daqueles que não se assemelhavam ao colonizador seriam dominadas, capturadas pelo sistema. Como aconteceu com os índios, com os negros e com as mulheres. Durante os séculos, os corpos das mulheres serviram de instrumento para a manutenção da lógica capitalista, para sustentar e reproduzir a lógica patriarcal, para carregar os privilégios masculinos.

Do lugar da invisibilidade, a resistência surge. A exploração e dominação sistemática de grupos minoritários passou a representar um território fértil para o surgimento de performances desviantes, de movimentos que passaram a buscar seus direitos não apenas à existência, mas a uma existência digna. A figura da sapatão representa um questionamento à lógica binária das relações cisheterossexuais. Coloca em xeque as performances de masculinidades, do que ser homem representa no social.

Ao ressignificar a palavra sapatão, antes tida como xingamento, e apropriar-se da performance sapatão, as mulheres proporcionam, com seus corpos e sexualidades, uma grande resistência ao sistema cisheterocentrado. Sapatão deixa de ser ofensa e passa a representar força política para garantir seu lugar de vida digna na sociedade.

* Texto escrito por Nathalia Rocha, mulher sapatão, fundadora e integrante do Núcleo Livre de Psicanálise, estuda gêneros e sexualidades desde 2012; e Carolina Barros, psicanalista, acompanhante terapêutica e psicóloga. Formada pela Unifor (2017.2). Membro da Equipe Êxtimo de Acompanhamento Terapêutico e parceira do Núcleo Livre de Psicanálise. Pensa uma psicanálise mais democrática, comprometida com a subjetividade de sua época, assim, tem se aprofundado, ao longo de seu percurso acadêmico e profissional, em estudos sobre gênero e sexualidade.

** O Núcleo Livre de Psicanálise é um núcleo de clínica pública e estudos de psicanálise criado para atender pessoas em situação de pobreza e vulnerabilidade social que desejam fazer uma psicanálise, mas não podem pagar com dinheiro. Atualmente, o Núcleo trabalha em duas frentes: atendimento para pessoas LGBTQIAP+ e para mulheres em situação de violência e possui três grupos de estudos em funcionamento.

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